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Infabilidade Pontifícia

 A proclamação do dogma da infalibilidade pontifícia foi a confirmação definitiva de uma verdade reconhecida pela Igreja desde o pontificado do primeiro Papa, São Pedro.

Clara Isabel Morazzani

Em certa ocasião, vi no jardim de um palácio, um relógio de sol. Pareceu- me algo bem curioso.

Aproximei-me para analisá-lo e comprovei que ele marcava a hora certa: nove e meia. Entre os variados e utilíssimos benefícios que nos proporciona a luz do astro rei, há um ao qual muitos não dão a devida importância, e, entretanto, ele é indispensável: o de indicar com exatidão a hora certa para toda a humanidade.

Houve época em que os homens se guiavam durante o dia pelo sol, e à noite pelas estrelas. Se assim não fosse, como

O amor dos cristãos ao Papa é mais forte que todos os cismas: o duro bronze do pé da imagem de São Pedro foi gasto pelos ósculos dos fiéis

O amor dos cristãos ao Papa é mais forte que todos os cismas: o duro bronze do pé da imagem de São Pedro foi gasto pelos ósculos dos fiéis

poderiam saber se eram nove horas da manhã ou três da tarde? Podemos imaginar as divergências de opiniões que daí decorreriam, pois cada qual quereria adaptar o horário, segundo suas próprias conveniências…

Assim, para presidir o tempo, Deus criou o curso solar, o qual segue com pontualidade imutável as leis estabelecidas pelo Supremo Artífice.

O sol, símbolo da Virgem Maria

Este pensamento leva-nos a considerações mais elevadas: ao ordenar o universo, o Criador fê-lo de forma hierarquizada, de tal modo que os seres inferiores simbolizam os superiores, tornando assim mais fácil às criaturas racionais — anjos e homens — subir até Ele.

Por isso, entre os louvores dirigidos à Santíssima Virgem no Pequeno Ofício da Imaculada Conceição, canta a Igreja: “E a representou maravilhosamente em todas as suas obras”.

O sol é nomeado inúmeras vezes no Ofício da Bem-Aventurada Virgem Maria como figura do nascimento do Salvador ou da beleza de Nossa Senhora: “Nascerá como o sol o Salvador do mundo e descerá ao seio da Virgem como a chuva sobre a relva”, “Ó Virgem prudentíssima, para onde ides como a aurora extremamente rutilante? Filha de Sião, toda formosa e suave sois, bela como a lua, eleita como o sol”, “Vossa maternidade, ó Virgem Mãe de Deus, anunciou a alegria a todo o universo: de Vós nasceu o Sol de Justiça, Cristo Deus nosso”, “Vossas vestes são alvas como a neve, e vosso semblante fulgura como o sol.”

O Papa, fundamento da unidade

Mas, enquanto regulador do tempo, o sol simboliza o precioso legado deixado por Jesus Cristo antes de subir ao Céu, a realização da promessa feita aos Apóstolos — “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20) —, que faz da Igreja um só rebanho reunido em torno de um só pastor: a autoridade suprema do Papa infalível.

Com efeito, o que seria da Esposa Mística de Cristo se ela não estivesse estruturada em torno de um único detentor da verdade que, quando se pronuncia ex cathedra sobre assuntos de fé e moral, faz ouvir uma palavra absolutamente inerrante? Há muito tempo teria ela desmoronado como casa construída sobre a areia, corroída pelas dissensões e heresias, privada de seus próprios fundamentos.

Se, pois, a Igreja atravessa triunfante e inabalável o curso dos séculos, é porque ela se encontra estabelecida sobre o Apóstolo Pedro como um edifício sobre seus alicerces.

E ai de quem não queira se submeter à sua autoridade! Poderíamos compará- lo a um pobre louco que, vendo o sol brilhar ao meio-dia, insistisse em afirmar que é meia-noite. Em nada a fulgurância do sol se veria diminuída…

Cristo instituiu a Igreja como sociedade visível

Ao deixar este mundo e subir aos Céus, Cristo Jesus encerrou de forma gloriosa sua permanência física entre os homens, para sentar-Se à direita do Pai na eternidade. Doravante faria sentir sua presença através do poder sobrenatural e invisível da graça. Porém, assim como o homem é um composto de corpo e alma, no qual espírito e matéria se harmonizam e se completam, tornava-se necessário que a Igreja por Ele fundada não só vivesse do sopro do Espírito Santo, mas estivesse solidamente constituída como sociedade visível e jurídica, na pessoa dos Apóstolos e de seus sucessores.

Para o exercício de tão alta missão, o Redentor, com didática divina, preparou seus discípulos ao longo de três anos

de convívio, durante os quais os fez progredir no conhecimento e no amor das verdades eternas, destacando-os das influências mundanas. O ponto culminante dessa ruptura com o mundo parece terse dado no momento em que Jesus, após perguntar-lhes quais as opiniões dos judeus a respeito do Filho do Homem, inquiriu: “E vós, quem dizeis que Eu sou? (Mt 16, 15). Certamente criou-se um suspense, todos entreolharam- se hesitantes. Então o fogoso Simão, cedendo à inspiração da graça no fundo de sua alma, lançou-se aos pés do Mestre, exclamando: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo!” (Mt 16, 16).

Pedro é o alicerce da Igreja

Desde toda a eternidade o Verbo de Deus conhecia aquela cena.

Enquanto Homem, porém, ardia em desejos de constatá-la com seus olhos carnais, e pode-se dizer que, desde o primeiro instante de sua concepção, seu Sagrado Coração pulsava com santa pressa de ouvir aquelas palavras que determinariam o nascimento da mais bela instituição da História. Possivelmente tenha experimentado uma divina emoção ao responder ao Apóstolo: “Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos Céus. E Eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos Céus” (Mt 16, 17-19).

Com esta solene promessa o Salvador acabava de anunciar o fundamento de sua Igreja: a pessoa de Pedro.

Ele o revestiria do mesmo poder com o qual o Pai O enviara. “Foi a Pedro que o Senhor falou: a um só, a fim de fundar a unidade em um só” (1).

O Primado de Pedro: de Jerusalém a Roma

 Após a Ascensão do Senhor e a descida do Espírito Santo, os Apóstolos iniciaram sua pregação na cidade de Jerusalém. A autoridade de Pedro sobre eles foi reconhecida desde o começo, e o Cenáculo passou a ser o berço da Igreja. Os primeiros anos do ministério de Pedro foram particularmente árduos: lemos nos Atos a descrição, palpitante como um livro de aventuras, dos sucessos e reveses apostólicos pelos quais passaram o primeiro Papa e a nascente comunidade cristã. Deixando a sede episcopal de Jerusalém sob o encargo de Tiago o Menor, Pedro transladou-se para Antioquia; em seguida, guiado pelos desígnios de Deus, instalou-se definitivamente em Roma.

A Providência, que tudo dispõe com sabedoria, preparava-lhe os caminhos e iria se servir dos restos do Império decadente como de uma plataforma, para sobre ela construir a Civilização Cristã.

A festa da Cátedra

 Entre as comemorações supersticiosas dos romanos daquela época, existia uma que se realizava a 22 de fevereiro. 

Neste dia, cada família se reunia em torno do túmulo familiar, sobre o qual era colocada uma cadeira, ou cátedra, onde supostamente se sentaria o falecido. Os parentes, então, festejavam, comendo e bebendo enquanto evocavam a memória dos mortos pertencentes ao seu clã. Desse costume pagão teria origem a festa da Cátedra de Pedro, que a Liturgia celebra todos os anos no mesmo dia 22 de fevereiro. A Igreja, como mãe sábia e prudente, soube assimilar tudo quanto existira de bom no passado, formando uma tradição rica em beleza e simbolismo, para seu maior esplendor.

Cátedra: seu significado

Na Audiência Geral concedida pelo Papa Bento XVI precisamente nessa data, no ano passado, ele assim explicou o sentido profundo dessa comemoração: “Literalmente, a ‘cátedra’ é a sede fixa do bispo, posta na igreja matriz de uma diocese, que por isso é chamada ‘catedral’, e constitui o símbolo da autoridade do bispo, e em particular do seu ‘magistério’, ou seja, do ensinamento evangélico que ele, enquanto sucessor dos Apóstolos, é chamado a conservar e a transmitir à comunidade cristã. (…) “A sede de Roma, depois destas migrações de São Pedro, torna-se assim reconhecida como a do sucessor de Pedro, e a ‘cátedra’ do seu bispo representa a do Apóstolo encarregado por Cristo de apascentar todo o seu rebanho. (…) Portanto, a cátedra do Bispo de Roma representa não apenas o seu serviço à comunidade romana, mas também a sua missão de guia de todo o Povo de Deus. Celebrar a Cátedra de Pedro, como fazemos hoje, significa, pois, atribuir-lhe um forte significado espiritual e reconhecerlhe um sinal privilegiado do amor de Deus, Pastor bom e eterno que quer reunir toda a sua Igreja e orientá-la no caminho da salvação.” 

O dom da infalibilidade pontifícia

 Qual é esse “sinal privilegiado do amor de Deus” selado sobre a Igreja de Roma e para o qual os cristãos voltam seus olhos com frêmitos de veneração e ternura? Não é, precisamente, o primado concedido por Jesus a Pedro quando, antes de sofrer sua Paixão, lhe disse: “Confirma os teus irmãos”? A infalibilidade pontifícia é, para todos os católicos, a bússola que aponta o rumo certo, a estrela que ilumina as trevas do erro, o sol que indica a hora com exatidão e pontualidade.

Na pessoa do Papa, e só nela, repousa o direito de ensinar aos fiéis a verdade, da mesma forma e com a mesma segurança com a qual Cristo instruiu os Apóstolos. A tal ponto é infalível sua decisão acerca das questões de fé e moral que, mesmo se dela diferissem toda a hierarquia eclesiástica com todos os teólogos e sábios do mundo, a única opinião válida seria a pronunciada ex cathedra pelo Vigário de Cristo.

Entusiasmo de São Bernardo pelo Papado

 O grande São Bernardo, com sua eloqüência ímpar, assim testemunhou sua adesão a essa Cátedra, nas palavras

No retábulo, acima do altar conserva-se a própria cátedra que São Pedro usava, em vida, no exercício de seu ministério (Altar da Cátedra de São Pedro - Basílica Vaticana)

No retábulo, acima do altar conserva-se a própria cátedra que São Pedro usava, em vida, no exercício de seu ministério (Altar da Cátedra de São Pedro - Basílica Vaticana)

dirigidas ao Papa Eugênio, o qual fora outrora seu discípulo: “Quem sois vós? Sois o grande Sacerdote, o Pontífice soberano. Sois o príncipe dos bispos, o herdeiro dos Apóstolos. Sois aquele a quem foram dadas as chaves, a quem foram confiadas as ovelhas. Outros além de vós são também porteiros do Céu e pastores de rebanhos; mas esse duplo título é em vós tanto mais glorioso quanto o recebestes como herança num sentido mais particular que todos os demais.

Esses outros têm seus rebanhos; somente vós tendes um só rebanho, formado não apenas pelas ovelhas, mas também pelos pastores; sois o único pastor de todos”(2).

E dando largas ao seu entusiasmo, continua: “Por fim, considerai que deveis ser o modelo exemplar da justiça, o espelho da santidade, o exemplo da piedade, a testemunha da verdade, o defensor da fé, o mestre das nações, o guia dos cristãos, o amigo do esposo, o padrinho da esposa, o ordenador do clero, o pastor dos povos, o mestre dos ignorantes, o refúgio dos perseguidos, o defensor dos pobres, a esperança dos miseráveis, o tutor dos órfãos, o protetor das viúvas, o olho dos cegos, a língua dos mudos, o bastão dos velhos, o vingador dos crimes, o terror dos perversos, a glória dos bons, o cetro dos poderosos, o flagelo dos tiranos, o pai dos reis, o moderador das leis, o dispensador das normas, o sal da terra, a luz do mundo, o sacerdote do Altíssimo, o vigário de Cristo, o ungüento do Senhor”(3).

Na Carta Encíclica Satis Cognitum, o Papa Leão XIII deixa bem clara a primordial missão do Príncipe dos Apóstolos: “O papel de Pedro é, pois, o de sustentar a Igreja e manter nela a conexão e a solidez de uma coesão indissolúvel”.

Definição do Concílio Vaticano II

 A doutrina da infalibilidade é muito bem esclarecida na Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio

Vaticano II: “Desta mesma infalibilidade goza o Romano Pontífice em razão do seu ofício de cabeça do Colégio Episcopal, sempre que — como supremo Pastor dos fiéis cristãos, que deve confirmar na fé os seus irmãos (cfr. Lc 22, 32) — define alguma doutrina em matéria de fé ou costumes. As suas definições com razão se dizem irreformáveis por si mesmas, e não pelo consenso da Igreja, pois foram pronunciadas sob a assistência do Espírito Santo, que lhe foi prometida na pessoa de São Pedro.

Não precisam, por isso, de qualquer alheia aprovação, nem são susceptíveis de apelação a outro juízo. Pois, nesse caso, o Romano Pontífice não fala como pessoa privada, mas expõe ou defende a doutrina da fé católica como mestre supremo da Igreja universal, no qual reside de modo singular o carisma da infalibilidade da mesma Igreja” (n. 25).

Uma controvérsia de dezenove séculos

O assunto da infalibilidade fora sempre um divisor de águas dentro da Igreja. Por não querer se submeter ao Bispo de Roma, a Igreja Oriental se separou da unidade católica, caindo no cisma; foi contra a autoridade do Sumo Pontífice que Lutero se levantou, proclamando o livre exame; e foi por desobediência ao Papa que o rei Henrique VIII levou a Inglaterra a abandonar a religião verdadeira.

Desde os primeiros séculos, os Santos Padres já pregavam a primazia de Roma sobre todas as igrejas, como podemos ler nos escritos de São Jerônimo, Santo Agostinho, São Cipriano, Santo Irineu e tantos outros. Entretanto, apesar da crença quase geral entre os católicos a respeito desse ponto, a infalibilidade pontifícia ainda não fora elevada à categoria de dogma.

Dezenove séculos de Era Cristã haviam- se passado e tal problemática se tornara ainda mais candente do que em outras épocas. Na Itália, a autoridade do Papa era contestada e a famosa idéia do risorgimento tomara conta da sociedade. Na França, católicos liberais e ultramontanos — estes últimos encabeçados por Louis Veuillot — travavam ferrenhas discussões sobre o tema. O momento histórico parecia ser o menos indicado para resolver essa questão que convulsionava a Europa e mantinha os ânimos em efervescência.

Proclamação do dogma da infalibilidade

Entretanto, sobre o sólio de Pedro sentava-se um varão digno de seu cargo, cuja firmeza de caráter nada fazia titubear. Pio IX não era daqueles que, sentindo-se atacados, preferem encolher-se até passar a tormenta.

Pelo contrário, julgava que o único modo de vencer a batalha consistia em fazer pleno uso de sua autoridade e tomar uma decisão capaz de deixar os adversários surpresos e emudecidos. Deliberou então, mesmo conhecendo no fundo da alma o caminho a seguir, convocar um Concílio para debater a questão.

E afinal, na manhã de 18 de julho de 1870, após solene celebração da Eucaristia, abriu-se a sessão na qual se proclamou o dogma. Quis Pio IX que ela fosse pública. Quando começou a ser lido o texto da Constituição dogmática De Ecclesia Christi, um relâmpago iluminou toda a assembléia e uma terrível tempestade rebentou subitamente, abalando as abóbadas da Basílica de São Pedro. Durante toda a leitura ouvia-se o ribombar dos trovões, sublinhando a grandeza do ato realizado.

Procedeu-se, então, à votação dos Padres Conciliares. Apenas dois votos foram non placet contra 538 placet, pois quase todos os membros da minoria “anti-infalibilista” haviam abandonado Roma na noite anterior. Levantou- se o Santo Padre e proclamou o dogma. A multidão prorrompeu numa explosão de brados de alegria, cobrindo por alguns momentos o rugido da tormenta. Quando Pio IX, com sua voz melodiosa, entoou o Te Deum, o vento acalmou-se de repente, a chuva cessou e um raio de sol bateu sobre seu semblante nobre e sereno.

“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18): a devoção ao Papa é um distintivo do católico fervoroso (Celebração presidida por Bento XVI na Praça de São Pedro)

“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18): a devoção ao Papa é um distintivo do católico fervoroso (Celebração presidida por Bento XVI na Praça de São Pedro)

O Concílio Vaticano I determinou a vitória definitiva da tese da infalibilidade e deu à Igreja maior coesão e solidez. Doravante não se poderia contestar seu Magistério sem incorrer em grave delito diante de Deus e colocar-se imediatamente fora da comunhão com Cristo.

Amor e temor

No final destas considerações, experimentamos em nossa alma sentimentos ao mesmo tempo contrários e harmônicos: temor e amor. Temor reverencial, ao nos darmos conta de quão pequenos somos em comparação com a grandeza da Instituição à qual pertencemos; amor, ao percebermos o profundo e atraente mistério da bondade de Deus que nela está contido.

A este amor vem juntar-se ainda uma extremada alegria por termos sido chamados a esta altíssima vocação de verdadeiros discípulos de Nosso Senhor Jesus Cristo, filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a Mestra e Senhora indizivelmente amada que nos une a Maria e, por Maria, a Jesus.

1) São Paciano, Bispo de Barcelona, 3ª carta a Semprônio, n. 11.

2) De Consideratione II, c.8.

3) Id. IV, 23.

(Revista Arautos do Evangelho, Fev/2007, n. 62, p. 18 à 23)